terça-feira, 5 de junho de 2012

NARA, A SUICIDA


            O dia era de intenso trabalho, como de costume, no Vale do Amanhecer.
         A Clarividente Neiva fazia uma pausa aparente nas suas atividades. Conversava com suas filhas, em torno de problemas de costura da oficina do Vale. Enquanto falava de panos e cortes, sua mente ativa resolvia outros problemas. A cada momento algum mensageiro de outro plano chegava, e se entendia com ela. A gente só notava o fato pela maneira que ela movia as sobrancelhas ou interrompia o que estava falando.
         Daí a poucos segundos ela se virava e, invariavelmente, perguntava:
         - O que eu estava mesmo dizendo?
         Com o tempo, a gente se acostuma com isso, e reserva o assunto para outra oportunidade. Às vezes acontece dela se transportar por momentos, e a gente tem a impressão que ela dormiu com os olhos abertos. Outras, ela faz gestos com as mãos ou fala alguma coisa em voz alta. Quando isso acontece, a gente procura disfarçar e finge que não viu. Mas, na maioria das vezes, ela se desculpa e torna a perguntar sobre o que estava falando...
         Outra coisa a que também estamos acostumados é com o segredo. É muito rara a ocasião em que ela diz alguma coisa do que está vendo ou falando. Talvez não seja tanto pelo sigilo da coisa, mas, sim, por desinteresse. Neiva lida com a vida de milhares de pessoas, e a gente acaba por se desinteressar pelos enredos complicados, mas comuns. Só o amor incondicional desperta e mantém um interesse permanente. E esse amor só ela possui, só ela mantém, com uma constância que chega a nos deixar acanhados de nós mesmos.
         Ela levantou uma peça de pano para melhor exame, e seus olhos de Clarividente depararam com a figura de uma jovem mulher, que se aproximou com desenvoltura.
         - Salve Deus! – disse Neiva – De onde você vem?
         - Sim, Tia Neiva, eu estou aproveitando mais uma oportunidade que me foi proporcionada por Mãe Tildes, e cheguei até a senhora para me esclarecer mais. Talvez a melhor forma de fazer isso seja contar-lhe a minha estória. Conheci Mãe Tildes em meio às minhas andanças aloucadas, que fiz depois que desencarnei...
         E foi contando sua estória triste:
         - Eu andava feito louca e cheia de dor. Na verdade, minha dor era tão grande que Deus, na sua bondade, permitiu-me caminhar na solidão, sem ser atingida pelos bandidos do espaço, apesar da minha revolta e descrença. A única coisa que me sustentava era o respeito que me devotavam devido ao amor do meu marido.
         Neiva sorriu, compadecida, e pediu-lhe que contasse sua estória desde o princípio. Enquanto isso, ela diligentemente discutia com sua filha, Carmen Lúcia, detalhes das capas dos mestres que estavam sendo confeccionadas na oficina. E a moça começou:

         Meu nome é Nara. Eu estava com 18 anos quando conheci Tomás, um rapaz de 20 anos. Estávamos numa festinha, em casa de uma família das vizinhanças de minha casa. A dona da casa chamava-se Alice, e eu gostava muito dela. Não sei se foi o ambiente agradável, ou se influência da noite chuvosa lá fora, contrastando com o conforto do interior da casa, mas o fato é que eu e Tomás nos apaixonamos à primeira vista. Ficamos sentados, olhando um para o outro, e nos tocando, de leve, com as mãos. Enquanto isso, todo mundo dançava e se divertia. Foi uma noite maravilhosa e, a partir daí, nosso namoro não mais foi interrompido até o casamento. Nosso noivado durou dois anos, mas foram da mais perfeita felicidade.
         Três meses depois de casados, fiquei grávida, e isso foi recebido por nós com muita alegria. A primeira preocupação de Tomás foi dar a notícia para sua mãe, que morava no Sul. Ele era filho único, e ela sonhava em ter um neto. Em poucas semanas, ela e Tomás fizeram todos os arranjos para ela vir morar conosco. Nos primeiros dias, tudo foi novidade e alegria. Tomás estava eufórico com a perspectiva do nosso filho e, ao mesmo tempo, sentia-se alegre com a presença da mãe.
         Mas, essa situação agradável durou pouco. Eu não sabia, naquele tempo, mas tanto a criança, que estava no meu ventre, como a minha sogra, eram meus cobradores espirituais. No princípio, eram pequenos ciúmes, palavras ásperas e pequenas birras. Eu logo revidei, e as coisas pegaram fogo. Nossa vida virou, de uma hora para outra, da tranqüilidade para o inferno. Eu passei a atacar minha sogra com violência, e ninguém entendia mais nada.
         No terceiro mês de gravidez, eu abortei! Senti-me mal, e fui levada para o pronto socorro. Quando voltei, me sentia um trapo. Deitei-me no meu quarto, e minha sogra ficou me agredindo, desandando a falar caluniosamente, com as feições alteradas pelo ódio e com voz gritante. Entre muitas coisas, ela me acusou:
         - Foi você quem provocou esse aborto! Você, sua desavergonhada, você que tem sido a desgraça do meu filho!
         Nesse preciso momento, Tomás assomou na soleira da porta e eu, num instante, percebi a tragédia inevitável. Meio tonta com a zoeira que minha sogra fazia, tentei me levantar, e implorei, com os olhos, o auxílio de Tomás. Mas, qual não foi minha surpresa! Suas feições se transformaram, e seus olhos pareciam que iam saltar das órbitas. Gritou:
         - Ouvi o que minha mãe disse! Então você provocou o aborto! Matou nosso filho! Eu jamais a perdoarei!...
         E avançou, possesso, em direção à cama. Gritei assustada, e vi quando ele apanhou um punhal ornamental, que estava sobre a cômoda, e avançou sobre mim!
         Minha sogra segurou-lhe o braço, e eu me sentei na cama, enfrentando seu olhar de fera. Não, não é possível! – pensei. Uma pessoa não se transforma assim, de repente. Não podia acreditar que aquele homem, a quem eu dedicava toda a minha existência, pudesse estar agindo daquela maneira. Dei um grito de dor e desespero, e procurei enfrentá-lo. Ele refreou, um pouco, o seu gesto, e a cena acabou tão depressa como começara. Foi como se um furacão tivesse passado naquele quarto e na minha vida. Algo fora destruído! A partir daí, entramos naquela terrível situação de solidão a dois.
         Esperei, durante dois anos, que surgisse outra gravidez, mas isso não aconteceu. Quando Tomás estava ausente, eu sentia saudade dele; quando ele chegava, eu me sentia distante dele. Minha solidão começou a se tornar insuportável. Tomás começou a beber, e quando voltava para casa, parecia uma fera. Eu tinha certeza de que ele procurava outras mulheres, e meu ciúme se tornou como um espinho no meu coração.
         Certa noite, Tomás não voltou para casa, e o desespero tomou conta de mim. Imaginava as coisas que ele estaria fazendo, e minha angústia aumentava a cada hora que se passava. De repente, não agüentei mais. Procurando na cozinha, encontrei uma lata de veneno para ratos, e ingeri seu conteúdo.
         Foi horrível! Comecei e me contorcer, com dores terríveis, com a garganta em fogo. A impressão que tinha era a que meu corpo ia sair pela boca. E assim fiquei, me retorcendo em agonia, gemendo e chorando por um longo tempo. Estava só em casa, e ninguém poderia me socorrer. Ao mesmo tempo, eu sentia como que entrando em uma espécie de transe, algo que me estava fazendo adormecer.
         Comecei a despertar lentamente, e me sentia envolvida numa espécie de massa, tênue e lilás. Ouvia gritos e gemidos, e não sabia se eram meus ou de outras pessoas. Continuava sentindo dores, porém elas eram um pouco destacadas de mim,  como se eu estivesse longe do meu corpo. A primeira sensação que tive foi de arrependimento do que havia feito.
         Perdi a noção do tempo, e não sei o quanto permaneci neste estado. Só sei que as razões do meu gesto começaram a se apresentar e, por mais que tentasse justificar, sentia que a culpa era só minha. Lembrava-me de minha sogra e de Tomás. Comecei a sentir que eu é que havia provocado aquela situação com a pobre mulher. Se eu tivesse tido mais tolerância, talvez não tivesse perdido o meu filho. Tinha sido egoísta o tempo todo, e só agora me dava conta disso!
         Às vezes, ficava em dúvida, e me perguntava se o ciúme tinha sido meu ou dela. Isso me perturbava mais ainda, e minha agonia era muito grande. Já percebera que eu havia morrido mas, assim mesmo, pensava em voltar. Mas, a lembrança da dor que passara tirava-me esse pensamento da cabeça. Não, não teria coragem de voltar para aquela terrível experiência...
         Subitamente, fui alertada por uma voz que ressoava no ambiente, dizendo:
         - Espíritos suicidas!  Preparem-se para voltar à Terra!...
         Fiquei mais animada e esperançosa. Sim, voltar para a Terra, encontrar Tomás, pedir-lhe perdão por tudo que fizera, pedir perdão à minha sogra, enfim, começar tudo de novo! Meus pensamentos ainda estavam muito embaralhados, e eu me esquecera de que era um simples espírito sem corpo, desencarnado!
         A voz do Guia Universal continuou o sermão, e a névoa lilás começou a clarear, a ponto de eu poder enxergar em torno. Vi, então, que estava num bem cuidado gramado, pontilhado de margaridas e lírios brancos. Comecei a me movimentar, e meu pensamento era um só: ir para perto de Tomás, pedir-lhe perdão dos meus atos. Fui caminhando e, por fim, cheguei a uma grande plataforma, que dava idéia de uma rodoviária ou de um aeroporto. O local estava cheio de gente e de vozes. Acima do rumor das pessoas, ouvia-se a voz do Guia Universal, como se saísse de possantes alto-falantes. Nisso, veio ao meu encontro um índio, muito bonito, com algumas penas de adorno, e, não sei como, eu sabia que ele se chamava Pena Branca.
         Ele segurou minha mão, e foi me conduzindo até diante de duas bocas de túneis, uma próxima da outra. Eu vacilava em qual das duas entraria, pois Pena Branca havia subitamente desaparecido, cabendo somente a mim a decisão. Tudo continuava envolto naquela névoa lilás, e minha indecisão aumentava a cada momento. Às vezes ficava lúcida e, no momento seguinte, não sabia o que estava fazendo. Se, num momento, eu estava vendo e ouvindo, logo nada via, como num pesadelo. De repente, senti uma mão que segurava na minha, e dei um grito:
         - Tomás! O meu querido Tomás!...
         Mas, eu não podia vê-lo. Apenas o ouvia. Exclamei, angustiada:
         - Estou aqui, meu amor. Venha, venha comigo, e não me deixe, não me solte. O que está acontecendo?
         Uma luz se fez na minha mente: ele me ama!
         Mas, de repente, tudo escureceu. Meu Deus! Que fizera eu? Tudo continuou a escurecer e senti minha mão se soltando da mão de Tomás. Quis segurar mais forte, mas não consegui. O outro túnel começou a me atrair, e fui levada para ele. Ouvia vozes de todo o tipo, e até mesmo idiomas de outras línguas, que eu parecia entender. Meu desespero por ter largado Tomás e o conhecimento da verdade do que eu fizera cortavam-me o coração. Por que Tomás me largou, se ele ainda me amava?
         Despertei na Terra. Respirei, e senti que estava consciente.
         Minha dor era muito grande, mas o arrependimento de tudo o que fizera era maior. Tinha consciência de haver perdido minha alma gêmea naquela escuridão, na boca dos túneis, e me lamentava da triste sorte.
         Não pude permanecer muito tempo em minhas cogitações, porque bandidos do espaço logo começaram a me perseguir. Corri de um lado para outro, procurando proteção. Cheguei até à casa de minha sogra, porém a vi maldizendo tanto a mim, que me deu medo. E tive que me afastar. Ela atribuía a mim toda a desgraça que havia acontecido!
         Perambulei pelo Rio de Janeiro, indecisa. Apenas uma idéia me surgia na cabeça, de vez em quando: Brasília. Não sei se era influência do meu Mentor ou se era uma lembrança do tempo de Tomás, que falava muito em Brasília. Estava ainda nessa indecisão, quando vi uma jovem que havia conhecido, e morava em Brasília. Lembrei-me do seu nome: Jeny!
         Fiquei em Brasília, e juntei-me a ela. Passei a acompanhá-la onde quer que ela fosse. Não sei se se passou um dia ou mais, mas, subitamente, me vi numa bonita casa, na beira de uma grande lagoa de águas cristalinas. Nessa casa havia algumas pessoas que falavam muito em espiritismo. Continuei acompanhando Jeny, e ela acabou por ir a um grande Templo.
         Meio receosa, eu a segui, e ela se dirigiu para o fundo do Templo, parando diante de uma linda estátua de um índio. Ele tinha um penacho dourado, e era tão grande que tomava metade do tamanho da parede de fundo!
         Estava assim, pertinho de Jeny, e trêmula de medo, quando senti que alguém me passava a mão pela cabeça. No mesmo instante, senti alívio de uma dor que começara desde o meu suicídio. Com o alívio da dor, passei a ter mais coerência na minha percepção. Comecei a prestar atenção aos movimentos no Templo. Foi quando ouvi uma voz dizendo:
         - Mário, a Tia Neiva está chegando.
         E a pessoa chamada Mário respondeu:
         - Edgard, pergunte a ela se vai haver Indução.
         Vi, então, quando a Tia chegou perto de Mário, e me viu. A senhora, então, me estendeu a mão, e me disse:
         - Venha, filha!
         Depois, a senhora chamou Edgard, e lhe disse:
         - Edgard, chama a Rosa e o Josias para fazer uma passagem.
         Fui, então, levada para junto deles, e recebi a Doutrina. Comecei a me sentir mais leve, e percebi quando Pai João de Aruanda, o Preto Velho da Rosa, me encaminhou a uma cassandra, que me levou para o Canal Vermelho.
         - Agora, Tia Neiva, eu voltei para saber notícias de Tomás. Tenho que pedir perdão a ele, pois minha consciência não me dá sossego, principalmente depois que soube que ele também havia morrido naquela noite!
         - Nara, minha filha, – respondeu Neiva – um dia você terá que voltar, mas não é tão fácil o reencontro com a alma gêmea. Você cometeu muitos desatinos, e terá que se reajustar por isso. Muitas vezes nós pensamos que estamos sendo feridos, e somos nós que estamos nos ferindo com nosso amor próprio. Isso se dá devido à nossa incompreensão, ao nosso egoísmo, que é a pior arma que voltamos contra nós mesmos. Temos a obrigação de analisar as coisas, pois em tudo existe uma razão, um propósito. Não devemos nos queixar tanto do nosso próximo, do nosso vizinho. Com a falta de tolerância nós fazemos os nossos inimigos.
         Nara ouviu em silêncio, e se aprontou para partir.
         - Salve Deus! Tia Neiva, agradeça por mim ao mestre Mário Kioshi, aos mestres Edgard, Josias, Rosa e outros, que me ajudaram. Também quero agradecer ao Pai João, que me levou para o Canal Vermelho.
         - Pois é, minha filha, em breve eu saberei onde estão Tomás e a mãe dele, e vou mandar notícias para você, lá no Canal.
         - Não, Tia Neiva, só preciso encontrar Tomás. A mãe dele está viva, e mora no Rio de Janeiro.
         - Engano seu, filha. Sua sogra já morreu, e está junto ao filho. Não se esqueça de que você passou sete anos aqui da Terra!... Olhe, Nara, naquele dia em que você encontrou sua benfeitora Jeny, eles estavam perto, ajudando você.
         - Como?! Eles estavam lá, e como não os vi?
         - Você não pôde vê-los porque estavam em outro plano, embora estivessem bem junto a você! Vai, minha filha, volte para o Canal Vermelho, de onde você será encaminhada a outros planos. Neste mundo, você nada tem mais a pagar. Você já resgatou muito com o seu amor e, agora, com seu arrependimento. Vai, e que Deus a acompanhe!

Salve Deus!


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