terça-feira, 5 de junho de 2012

A LOUCA DA SENZALA

PEÇA EM 3 ATOS

30/OUTUBRO/1971
VALE DO AMANHECER

T I A    N  E  I  V  A




1753 – Mudança da capital para o Rio de Janeiro

Regente em Portugal: Dom João VI



Sala de um casarão. Época da escravidão. Preparação para a festa de casamento da Sinhazinha daí a 3 dias.


PERSONAGENS:

Preto Velho (PAI JOÃO)
Preta Velha (NHA ZEFA)
Filho de Nha Zefa (NHÔ DICO), rapazinho apaixonado por         mocinha escrava (NHA SILVINA) que irá acompanhar Sinhazinha depois do casamento
Sinhazinha (MARIAZINHA)
Sinhazinha (DOROTÉIA), irmã de Mariazinha
Dono da casa (AMÂNCIO)
Espírito Protetor (MÃE YARA), mentora de Pai João, feitor
dos escravos
DENIZE – Encarnação anterior de Mariazinha
Preto Velho (NHÔ ANASTÁCIO)
Preto Velho (NHÔ TOMAZ)
Escrava (NHA RITA)
Menino escravo (CRIOULO)
Espírito Protetor da Magia (O AFRICANO)
Espírito Guia da Magia (A MESTIÇA)
Espírito afim (ALMA GÊMEA DE MARIAZINHA)

1º  A T O

                                     
                            Na sala de jantar, ZEFA, PAI JOÃO e SILVINA conversam.
                            ZEFA arrumando, preparando e colocando tudo em ordem.


ZEFA (falando a Pai João)

         Farta treis dia p’ro casamento ejá tá tudu preparado. As sinhazinha já tá tudu chegando do Rio de Janeiro p’ra assisti a festa. Óia qui tem cada moça bunita!... Vai sê difici a gente vê outra coisa assim...

PAI JOÃO

         É, Zefa, vai sê uma festança...

ZEFA

         Tô com muita dó do Nho Dico. Vai sofrê muito, longe da Silvina. Ocê sabe que ela vai acompanhá Mariazinha. Já pensô nisso, João? Coitadinho do Nhô Dico! Sofre calado, sonhando com a Silvina... (melancolia): Preto num tem direito de amá. Tem só que oiá de longe. Num sei que vai sê dele não... (vira-se para Silvina): Vá se arrumá, menina. Daqui a pôco ocê tem que prepará a Sinhazinha. (Silvina sai da sala. Zefa continua em tom confidencial): Sabe, João? Nhô Dico vai oiá Silvino prepará a Sinhazinha. Ele tá arriscando o côro. Mais, também, coitado, farta pôco tempo pra ele num vê a Silvina mais.. Tô pensando como o coitadinho vai sofrê!... (Silvina entra atabalhoada e tropeça num vaso. Senta-se, olhando para Zefa, que continua falando): Coitadinha da Mariazinha! Vai se casá a contragôsto. Tão boa, tem tanto amô no coração!... Ela fala com nóis como se a gente fosse branco. O home é rico, mais ela num tem amô no coração... Num adianta, né, João? É... branco também sofre! (continua em tom de revolta): E, no entanto – cruiz credo! Tenho até medo de falá... A Dorotéia qui divia tá sofrendo...

PAI JOÃO

         É, Zefa, quanta coisa já se ouviu falá!... Quantos caprichos qui valeu a
vida de nossos irmão!...
1º ato – fls. 2
ZEFA

         Sabe, João? Dorotéia deve ter um espírito no lombo.

PAI JOÃO

         Cuidado com as palavras, Zefa!

ZEFA (ainda revoltada)

         Ela é muito perigosa! Voismicê viu como o Zico apanhou só pruquê deixou o cavalo dela fugi? E só por isso ele apanhô como o diabo... (entra Nhô Dico, sem dizer nada. Zefa dirige-se a ele): E ocê, Dico, cumu é que ainda tem corage de oiá a Silvina arrumá a Sinhazinha? Toma conta do seu côro, nêgo danado...

NHÔ DICO

         É pruquê agora só Deus pode fazê nóis encontrá de novo. Quero ficá mais perto dela enquanto ela num vai simbora. Eu acridito muito na bondade de Sinhá Maria.

ZEFA

         Óia, gente, pra mim branco nenhum vale nada!...

PAI JOÃO

         Pesa tuas palavras, Zefa, pra dispois tu dizê... O branco custuma dizê qui nêgo num tem alma i qui num é fio di Deus. No entanto, só dipois da morte é qui voismicê vai sabê pruquê. Deus tingiu nosso côro pra modi nóis sirvi os brancos...O chicote... Nada, num importa! Ah, Zefa, si tu subesse qui nêgo já foi branco... Si subesse as istripulias que nêgo já fez... Si tu subesse qui muitas vêis Sinhá Dorotéia já foi preta como tu, ocê fazia as coisa direito i num ficava aí provocando, escunjurando... Reza por ela. Só Deus jula as criaturas, mesmo a Sinhazinha Dorotéia cum sua mardade...



1º ato – fls. 3
ZEFA (assustada)

         Te desconjuro, nêgo!... Tu tem hora qui cunversa como si fosse branco. Inda vô sabê quem ti insinou tanta coisa. É... Antes de morrê inda vou sabê si tu tá inventando... Cruiz credo! (faz o sinal da cruz)

PAI JOÃO (dá um riso cansado, balança a cabeça e profetiza)

         Si tu subesse a dôr qui tu vai passá!... Agora  eu sei pruquê tu guarda tanto ódio da Sinhazinha Dorotéia (olha o horizonte como se guardasse um segredo)

NHÔ DICO

         Está como se estivessi fora de si (ele e Silvina dão as mãos em silêncio)

SILVINA (resmungando)

         Tu tá diferente, Dico! Parece inté qui num gosta mais de mim...

NHÔ DICO

         Num é nada não, Silvina. Já sinto a dor da sodade! Deus vai apartá ocê de mim... (soluça) i eu num vô dá conta de vivê longe d’ocê... (olham-se mutuamente por longo tempo)

ZEFA (olhando para o casal)

         Veja, João, pruquê tô revortada. Nêgo só tem é qui sofrê, mais nada!

PAI JOÃO

         Pobre Zefa!... Há quanto tempo eu insisto cum voismicê. Já te incinei, e ocê nunca quis. Só viveu na gandaia... Quando chegava a hora boa de descansá, ocê ia pras fulia da senzala, si misturá caqueles nêgo... Lembra quando eu disse a ocê qui ocê tinha uma cruz nas costa, numa missão di Nosso Sinhô Jisuis Cristo? Sabe pruquê, Zefa? Pruquê tu já foi branca!...

1º ato – fls. 4
ZEFA (desconfiada, dando um muchocho)

         Ah!... Deixa disso, João!...

PAI JOÃO

         É, ocê era arvinha... Eu mi alembro d’ocê...

ZEFA

         Tu é besta, nêgo! Vem sempre cum tuas invenção, i eu acridito!...

PAI JOÃO (com voz cansada e de maus presságios)

         O teu fio – essi moleque Nhô Dico... Ah! Isso aí... num vô dizê pruque oceis num vão acreditá (faz um muchocho): Acriditi si quisé: a verdade é qui ele já foi um sinhô. Ele já seu chicotada em quem hoje tá dano nele...

ZEFA (com ar satisfeito, dirige-se a Nhô Dico)

         Cruiz credo! I tomara que ocê tenha dado muita chicotada boa. E tenha inté matado... Cruiz credo! Aquela amardiçuada da Sinhazinha Dorotéia...

NHÔ DICO (indiferente a tudo, sorri, balançando negativamente a cabeça)

         Mãe indoidô, e indoideceu também Pai João!  (sai da sala)

PAI JOÃO

         Óia, Nha Zefa, voismicê é mêmo uma muié incompreensiva. Ti chamei muito a atenção. Ocê si lembra qui na senzala ocê bulia cum todo mundo, julgando e mardiznedo as pessoa? Ocê já feiz muito mal... E tenha cuidado, pruquê tudo qui ocê mais qué no mundo é seu fio... E a sorte dele num é boa... Sim, num é boa, aqui entri nóis. Seu fio é um esprito de lúiz. Ele veio pra se sarvá. E, dispois, o esprito dele fica aqui, vagando, protegendo nóis tudo.



1º ato – fls. 6
ZEFA (gritando)

         Meu fio vai morrê?

PAI JOÃO

         Tu sabe muito bem qui tâmo aqui pintado di preto. Foi Deus qui pintô pra nossa salvação, pra nóis pagá o qui fizemo. Já ti disse qui todos nóis fomo branco.

ZEFA (em gargalhadas)

         Tu também, cum todo esse nigrume, já foi branco? Deixa de gaiofa... Até tua arma, eu tenho certeza qui é preta.

PAI JOÃO

         Já ti disse qui só a Deus cabe o julgamento. E tu continua teimando. Zefa, teu fio é um esprito de lúis. Num vê qui ele ama, cum tôda pureza, Nha Silvina, qui também é uma enviada de Deus no meio dessa negrada suja qui tá por aí?

ZEFA (galhofeira, mas insegura)

         Verdade, Pai João? Cruiz credo! Qui nos valha Nosso Sinhô Jisuis Cristo! (beija uma cruz  pendurada em seu pescoço). Ocê tá mi fazendo alembrá qui Silvina foi escolhida pela Sinhazinha e vai imbora. I o qui vai sê do meu pobre fio?... (já demonstrando alarme)

PAI JOÃO

         Num ti preocupa, Zefa. Nhô Dico tá longe du alcance de tuas mão. Ele é responsável pelo teu esprito. Ocê é a única conta qui ele tem pra pagar neste chão.

ZEFA

         Mas, si a Silvina fô embora, meu fio se mata! Tenho certeza disso. Ele num resisti  a dor. (Ruídos de pessoas chegando. Dois crioulos passam)
1º ato – fls. 7
PAI JOÃO

         Vai, vai, num tenha medo qui seu fio num se suicida. As mãos de Deus tão sobre ele neste instanti. (Pai João e Zefa saem. Zefa está preocupada. Entram as duas sinhazinhas. Dorotéia gesticula, esbaforida)

DOROTÉIA (com ares de grandeza)

         Imagina, Mariazinha! Dorotéia Alcântara Rodrigues de Abreu, sua irmã, vai se casar com o ilustre representante e primo de Dom João VI, Carlos Henrique de Albuquerque Azevedo. Já imaginou, queridinha, sua irmã fazendo parte da ilustre família real? Já fez uma idéia do poder e do luxo? Sabe o que é isso, querida irmã? Eu, vivendo no meio de gente fina, da elite, com todos os requintes e prazeres? Olha, sua boba, você está triste porque não tem amor no coração.
         Me diga uma coisa: Prefere ficar aqui, no meio desta negrada suja? Essa gente não presta. Só sabem empestiar a casa da gente. Repare bem o mau cheiro que eles têm. “Nêgo não vai pro céu, nem que seja rezador/Nêgo catinga muito, incomoda Nosso Senhor!” Deixa de ser boba, irmãzinha. Quando você estiver casada, gozando o luxo e a riqueza, verá como é bom viver livre deles!... E, olha, vou lhe contar um segredo: Você acha  que gosto do Carlos Henrique? Bobagem, queridinha. Eu só quero ter uma vida melhor!
         É bem verdade que nosso pai é muito rico, mas, e daí? Viver aqui junto com estas pestes? (aponta Silvina que, abaixada, faz papelotes em Mariazinha. A negrinha  vê Dico num canto, olhando-a, e fica parada. As duas sinhazinhas olham para Dico, e Dorotéia grita)

DOROTÉIA
        
         Negro bisbilhoteiro! Imundo! Canalha! Vais ter o castigo que mereces... Papai! Papai! (Amâncio, o pai, chega raivoso e Dorotéia aponta para o Dico)
         Veja, pai, esse negro imundo ouvindo a nossa conversa! Quero que o mate, pois se meu noivo souber o que estávamos falando não se casará mais comigo!...





1º ato – fls. 8
MARIAZINHA (intervindo, nervosa)

         Não ligue para isto, papai. Ele não fez por mal. Por favor, não faça mal a ele! (o pai, raivoso, arrasta Dico para fora. Mariazinha grita, pedindo piedade. Os três ficam na sala, parados. Ouve-se apenas o barulho das chibatadas. Dorotéia vai até a janela e volta gargalhando)

DOROTÉIA

         Imagina, maninha, Dico já tem um palmo de língua para fora! Nunca mais ele vai querer ouvir a conversa dos outros. Quando eu digo que negro não presta... (Entra Zefa correndo e se ajoelha aos pés de Dorotéia, implorando piedade. Dorotéia se levanta, empurra-a com o pé, jogando-a ao chão, e grita) Tirem esta negra suja daqui! Tocou-me com estas mãos imundas! Estou toda suja, vejam!... (Amâncio volta e procura acalmá-la)

AMÂNCIO

         Vamos, filhinha, acalme-se. Ele já está recebendo o merecido castigo. Esses cães imundos!... Não valem para nada. Só nos causam aborrecimentos! (Zefa se levanta e vai saindo, desesperada, e encontra Pai João, que vai entrando. Ele sorri amargamente para ela, balançando a cabeça. Lá de fora ouve-se um último gemido. A negrinha levanta a cabeça e faz o Em Nome do Padre.

SILVINA

         Que Deus abençoe a alma do pobre Nhô Dico!....
         (Dorotéia se levanta e se lança contra Silvina, jogando-a no chão. Mariazinha ergue-se como uma louca, apanha um punhal sobre a mesa, tira-o da bainha e, com um gesto alucinado, ergue os braços e grita loucamente)

MARIAZINHA

         Não temes o castigo de Deus? (gargalha estridentemente, como se estivesse irada contra Deus) Deus é nosso pai? Pai... Ele não existe como pai e, sim, como um tirano!... Ah, ah, ah... Um pai que tinge os filhos de preto! Um pai que obriga os filhos a viverem como bichos, enxotados e humilhados por onde passam... Onde está você, pai? Venha até aqui e veja o seu filho negro chicoteado! (anda loucamente, olhando sempre para a janela) Você quem permitiu isso, não foi? Por que quis que ele viesse ao mundo? Foi só pelo prazer desta hora, não foi, pai?  Queria ver o seu filho rasgado pelas chibatas, pisoteado... Falam de sua imensa bondade! Onde está ela? (barulho de chicotes) Na perversidade da irmã que me deste? Ah, pai, a sua bondade está no sangue derramado de Nhô Dico e dos outros? Não é isso, pai? É ali , pai, é ali  que está ela... Vejam a bondade de nosso pai! (aponta para a janela, rindo loucamente. Amâncio entra e ela continua, apontando para ele) Por que vocês, os pais, são tão perversos? O senhor, meu pai! Pai da dor e da desgraça, da humilhação e da maldade!... Pai da vergonha, pai que só mostra o desprezo e a morte! Pai que espreita de tocaia, para sugar o sangue do negro. Pai, que me deu a vida, me envergonha... O senhor me envergonha, pai, me enoja! Onde está a sua honra, pai? No dinheiro que tem nos bolsos? Neste casarão bonito? Será, pai? Ou ela está nas suas mãos sujas de sangue, no seu olhar que conspira traição, nessa sua horrenda máscara? Vejam que horrenda máscara!... Ele se mascarou de pai para ensinar a desgraça, somente a desgraça!... (volta-se, e pára no meio da sala, erguendo os braços, já quase sem forças, e grita, mais loucamente ainda:) E por que me deu a vida, pai? Por quê? O senhor me embruteceu a alma, a carne, a existência. Mostrou-me a vergonha que é possuir um coração. Ele tem que bater, que vibrar, mas é com a desonra e com a desgraça dos outros, não é, meu pai? Foi isso que aprendi até agora... Vamos chicotear os negros, sugar, como vampiros, o seu sangue, vamos, todos, fazer a desgraça! A desgraça... A desgraça!...
         (Pai João vai chegando devagarinho, olhando como se entendesse a situação)
DOROTÉIA (gritando)

         Meu Deus! Meu Pai! (e apontando os negros:) Enxote-os daqui. São os únicos culpados pelo que está acontecendo à minha pobre irmãzinha. São eles os culpados, pai!
         (Pai e filha se voltam para os negros e não percebem Mariazinha indo na direção de Dorotéia, com o punhal na mão. Todos se entreolham, em pânico, enquanto Mariazinha sai em perseguição a Dorotéia, que corre.

MARIAZINHA (gritando e correndo pela sala)

         Vou te matar!  Vou te matar! Vou fazer correr o teu sangue para satisfazer nosso pai! Será para sua satisfação, meu pai!...

1º ato – fls. 10

         (Dorotéia, assustada, não diz nada, só foge da irmã. Todos estão estarrecidos. Amâncio começa a gritar:)

AMÂNCIO

         Minha filha, Mariazinha! Dê-me esse punhal!

MARIAZINHA (segurando Dorotéia pelo braço e armando o golpe)

         Ninguém tente chegar perto de mim! Vou matar Dorotéia e, depois, cada um de vocês. O senhor também, meu pai. Matarei todos, todos... (e ri loucamente)
AMÂNCIO (gritando, agitado)

         Pelo amor de Deus, minha filha, largue sua irmã e esse punhal!...
         ( enquanto o pai grita e Mariazinha está cheia de fúria, ouve-se a voz de Pai João, que se encaminha para ela e fala com suavidade:)

PAI JOÃO

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         (Mariazinha baixa o punhal e se joga nos ombros de Pai João, caindo até o chão. Volta a si estonteada, e começa a beijar as mãos de Pai João. Todos ficam assombrados, e Amâncio se preocupa com Mariazinha)

DOROTÉIA (com todo sarcasmo)

         Até que enfim vejo um negro servir para alguma coisa!...
         (Estão todos ainda muito assombrados, olhando Mariazinha, que aceitou toda a doutrina, mas não se desfizera da arma. Mariazinha se levanta e Dorotéia se encosta mais na parede. Mariazinha sai, e vai até o lugar onde estava o corpo de Nhô Dico. Ela apanha uma bolsinha de couro, que estava caída no chão.
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1º ato – fls. 11
DOROTÉIA

         Socorro, pai! Defenda-me!

MARIAZINHA (gritando)

         Ninguém defende as nossas maldades, ninguém! (gesticulando para Dorotéia, grita:)  Vais pagar pela tua perversidade!
         (Amâncio procura se aproximar de Mariazinha, mas ela se afasta e leva Dorotéia pelo braço, não deixando que ela se aproxime do pai. Amâncio chama Mariazinha para entrarem em casa)

AMÂNCIO

         Vamos, filha, vamos entrar e descansar um pouco, porque, depois de amanhã, é o casamento de sua irmã, e o noivo já vai chegar.
         (Ouvindo falar no casamento, Mariazinha tem novas reações)

MARIAZINHA (gargalhando histericamente)

         Casamento??? Haverá que casamento???

AMÂNCIO  (tentando tranquilizá-la)

         Esqueça, filha! Não tratemos disso agora.
         (Mariazinha solta Dorotéia, que se abraça com o pai e os dois vão retornando à casa. Mariazinha olha para Pai João e, num impulso, se abraça com ele e diz:)
MARIAZINHA
        
         Viu, Nhô João? Não compreenderam mesmo o teu gesto. Eles gostam é de sangue! Só tu és como eu. Eles gostam, mesmo, é de sangue... Por que não me deixou matar Dorotéia? (virando-se para Amâncio e Dorotéia:) Saiam daqui! Agora, só obedecerei ao Pai João.





1º ato – fls. 12
PAI JOÃO

         Não, fia, não pode fazê isso! João vai pra senzala, descansá com os seus. Voismicê deve di ir cum teu pai e cum sinhazinha tua irmã, pra tua casa.

DOROTÉIA (gritando)

         Oh, meu pai! Deixa, deixa, pai. Dê ordens para João levar Mariazinha para a senzala. Ela gosta mais deles do que dos brancos.

PAI JOÃO

         Vai, minha fia! Vai, sinhazinha, vai cum teu pai e tua irmã, e num te preocupe voismicê cum nada. Num deve preocupá cum nêgo véio. Obedece teu pai e tem compaixão da sinhazinha Dorotéia. (enquanto Pai João fala, Mariazinha vai se recuperando) Siga teu pai, sinhazinha. Onde tá a caridade do teu coração, sempre tão bom, que sempre foi manso? Segue teu pai e, dispôs, volta qui vô isclaricê pra voismicê a passage de Nosso Sinhô Jisuis Cristo, que nos vale aqui na Terra. Vai, minha sinhazinha!...
         (Sem nada dizer, Mariazinha se aproxima do pai, que lhe pega nas pontas dos dedos, e vão para casa)

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F E C H A    O    P A N O

(FIM DO 1º ATO)









2º  A T O

PAI JOÃO ESTÁ NA SALA, ESTUPEFATO COM TUDO QUE ACONTECEU, QUANDO UMA LUZ RÓSEA – A LUZ DE YARA – ILUMINA O CENÁRIO NITIDAMENTE. OUVE-SE A VOZ DE MÃE YARA E PAI JOÃO, QUE É MÉDIUM AUDITIVO, APENAS, FAZ GESTO DE QUEM PROCURA A ORIGEM DA VOZ.

YARA
        
         João, meu pobre João, chegou o teu dia. Tens, como missão, essa tua jovem sinhazinha e o desventurado Nhô Dico.

JOÃO  




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